Sobre as chuvas na Região Metropolitana de São Paulo

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Sobre as chuvas na Região Metropolitana de São Paulo

A Região Metropolitana de São Paulo está quase toda localizada na bacia hidrográfica do Alto Tietê, o que significa que cada gota de chuva que cai sobre a Grande São Paulo chega, mais cedo ou mais tarde, no Rio Tietê. A bacia hidrográfica se assemelha a uma folha de couve, toda a área da folha converge para o seu caule central, que se assemelha a um rio, e os caules que chegam ao principal podem ser comparados aos afluentes. Uma gotinha de água colocada sobre qualquer ponto dessa folha, devido ao seu formato, será conduzida para o caule central e, ao longo deste, para o seu ponto final, que, em hidrologia, seria a foz ou exutório do Rio.

A bacia do Alto Tietê abrange nada menos que 39 municípios e 21 milhões de pessoas, que drenam suas águas de chuva para um único curso d’água, de um único rio, o Tietê, através de seus afluentes, dentre os quais destacam-se os rios Pinheiros, Tamanduateí, Aricanduva, Baquirivu e Juqueri, os principais afluentes do Rio Tietê na RMSP.

O modelo de urbanização da Grande São Paulo tem duas características principais que foram (e são) definidoras das atuais condições de formação de enchentes nesses rios.

Primeiro, é uma urbanização extremamente adensada e impermeável. Onde antes a água infiltrava e ficava retida em vegetação, copas de árvores, depressões no terreno, com a urbanização, essa água passa a escoar rapidamente sobre superfícies de concreto. Estamos falando aqui da impermeabilização das bacias contribuintes e consequente ampliação dos volumes de cheia.

Segundo, é uma urbanização que sempre priorizou o sistema viário sobre todos os outros sistemas urbanos e que se valeu dos chamados fundos de vale, ou seja, das várzeas dos rios, para implantar ruas e avenidas, às margens destes ou por sobre estes, muitas vezes, confinando-os em galerias fechadas com capacidade de transporte de água muitas vezes menor que o seu leito e planície naturais. Complementando, além do estreitamento das calhas dos rios para a implantação das avenidas, estas calhas foram também retificadas, para promover uma maior eficiência da construção do sistema viário.

A drenagem, ou seja, os rios, historicamente, em São Paulo, SEMPRE ficou em segundo plano diante da engenharia viária. A prioridade sempre foi a construção de ruas e avenidas. Pense em uma avenida importante da metrópole paulista: a chance de ela estar localizada às margens ou por sobre um leito de rio é de mais de noventa e cinco por cento. Marginais Tietê e Pinheiros; Avenida do Estado; Av. Aricanduva, Av Pacabembu, Av Sumaré, Av Jacu Pêssego, Eliseu de Almeida, Rua Vergueiro, Rua das Juntas Provisórias, Av Tiradentes, 23 de Maio, 9 de Julho, e por aí vai, até a pista do aeroporto de Cumbica está construída sobre a calha de um rio, o Baquirivu. Sabe o Itororó, da canção infantil? Está embaixo da Av. 23 de Maio. Sabe as margens do Ipiranga, do hino nacional? Estão debaixo da Rodovia Imigrantes e Av. Ricardo Jaffet. Não importa em que ponto de São Paulo você está, a distância até um curso d’água não supera 300 metros.

Com essa densidade hidrográfica e essa matriz viária fundamentada em vias de fundo de vale, a conta não tinha como fechar. E não fecha mesmo. É muito mais água chegando em muito menos espaço de escoamento.

A gestão da drenagem na Grande São Paulo é feita pelo Estado, uma vez que envolve 39 municípios, por meio de um órgão chamado DAEE que gerencia a macrodrenagem (os rios e córregos intermunicipais), em parceria com as prefeituras locais, que cuidam da drenagem dos pequenos córregos e do sistema de microdrenagem – galerias, bueiras, bocas de lobo, etc.

Em 1998 nasceu o primeiro Plano Diretor de Macrodrenagem do Alto Tietê, o PDMAT-1, elaborado pelo DAEE. Até então, a engenharia de drenagem tinha como premissa ampliar as calhas dos rios cada vez que sua capacidade era superada – e ela era permanentemente superada, pois a bacia não parava de ser impermeabilizada, com mais e mais concreto sendo colocado no lugar das superfícies vegetadas, e avenidas não paravam de ser construídas sobre as calhas dos rios. Ampliava-se a calha, resolvia-se o problema da enchente em um ponto, lançava-se a enchente rio abaixo, ampliava-se a calha, e assim se propagava a enchente infinitamente rio abaixo. Era o modelo de canalizações.

O PDMAT nasceu de uma mudança de paradigma, onde se buscava solucionar o problema das enchentes controlando a água que chega até o rio, ao invés de ampliar a calha do rio para comportar uma enchente cada vez maior. Nascia o modelo de amortecimento, fundamentado na chamada vazão de restrição.

Vazão de restrição é a capacidade hidráulica de um determinado rio, é o volume de água que a sua calha comporta. No modelo de armazenamento, considera-se a vazão de restrição como um critério a partir do qual serão planejadas ações na bacia para que o volume de chuva que aporta até ele não faça com que sua calha transborde.
Porque há duas formas de tratar as enchentes. Ampliando o espaço, na várzea, para as águas escoarem ou reduzindo o volume de água que chega até a calha.

A ampliação da calha esbarra no modelo viário de vias de fundo de vale, na maioria dos casos, mas também em construções outras existentes nas planícies de inundação dos rios. O Rio Tietê teve sua calha ampliada inúmeras vezes, até o limite da primeira faixa da av. Marginal – que, por decisão de gestão, era e é tratada como prioridade sobre o espaço do rio.

A Drenagem Urbana é uma questão de alocação de espaços. Espaço das águas.

Das três componentes do risco de inundação, AMEAÇA – probabilidade de chover, EXPOSIÇÃO – distância que a cidade se encontra do curso do rio e VULNERABILIDADE – grau de preparo da cidade para fazer frente ao evento de chuva, a primeira, ameaça, é aquela sobre a qual não temos qualquer gerência. Não é possível evitar a chuva. E está chovendo mais, como maior intensidade e frequência (mudanças climáticas existem, esta é uma premissa deste texto que não está aberta a discussão, são números. De ontem pra hoje choveu 190 mm em São Paulo. Isso são números e eles estão aumentando, por favor, não duvide – a imagem do radar que ilustra este artigo está aí de prova).

A gestão do risco das inundações tem lugar, portanto, nas outras duas componentes do risco, a exposição e a vulnerabilidade.

Quanto à exposição, o que pode ser feito é não ocupar as margens e várzeas e, onde já se deu a ocupação, desfazer, recuar a cidade. É o caso das remoções, desapropriações e renaturalização, por exemplo. São medidas custosas, mas não de todo infactíveis. E, onde ainda há várzeas urbanas remanescentes, evitar a sua ocupação. Ao contrário do que se pensa, a grande maioria das ocupações de várzeas se dá de maneira regular, por implantação de vias ou de empreendimentos imobiliários, em alguns casos também de equipamentos urbanos e áreas institucionais. Uma pequena parte são ocupações ilegais.

Quanto à vulnerabilidade, o que se pode fazer é proteger as áreas de risco, com medidas chamadas estruturais, quando consistem de obras, e não estruturais, quando consistem de planos de ação, por exemplo, em emergências.

As medidas estruturais podem ser intervenções nos rios ou na bacia hidrográfica. Podem ser centralizadas ou dispersas na bacia. As intervenções nos rios consistem em ampliar a sua calha, desassorear os canais, estabilizar taludes. As intervenções na bacia consistem em amortecer os volumes de cheia, antes que cheguem aos rios. Isto pode ser feito de maneira pontual, por meio de bacias de detenção (que em São Paulo ficaram conhecidas por piscinões depois de serem assim apelidadas por um famoso político), ou de maneira distribuída na bacia, por meio de reservatórios de aproveitamento de água de chuva nas residências e prédios, trincheiras e valas de infiltração, pavimentos permeáveis, jardins de chuva.

As medidas pontuais, como os piscinões, tem a vantagem de concentrar maiores volumes e possibilitar o gerenciamento centralizado. Tem a desvantagem de que as bacias hidrográficas, via de regra, não tem saneamento e, portanto, as estruturas passam a acumular o esgoto e o lixo que é transportado pelos rios. Convenhamos que esta desvantagem não é “culpa” do piscinão, mas cosequência da falta de saneamento na bacia o que, no entanto, não deixa de ser um custo a mais na sua manutenção.

As medidas distribuídas tem a vantagem de possibilitar o aproveitamento das águas de chuva antes que cheguem aos rios, ou seja, ainda relativamente limpas, podendo ser utilizadas para lavagem de pátios, rega de jardins, além de contribuir para a infiltração e o restabelecimento das condições naturais de drenagem na bacia. Elas tem a desvantagem, em relação às medidas pontuais, de possibilitar menores volumes de armazenamento e maiores custos de manutenção. Além disso, acarretam em maior dificuldade de gerenciamento de um grande número de equipamentos descentralizados sob gerência de diferentes agentes – públicos, privados e institucionais. Problemas “lidáveis”, especialmente diante da dificuldade de espaços para a implantação das medidas centralizadas.

Fato é que o conjunto das soluções é que possibilita o bom gerenciamento da drenagem. As medidas pontuais permitem dar conta dos imensos volumes de déficit, quando se compara o volume de chuva com a capacidade de escoamento dos rios. Para se ter uma ideia, somente na bacia do Rio Tamanduateí, que abrange a região do ABC Paulista, o déficit hidráulico é da ordem de 13 milhões de metros cúbicos de água. Esse é o volume de água que transborda do Rio Tamanduateí durante as chuvas de grande intensidade. A maioria das chuvas, no entanto, é de baixa intensidade, e o seu manejo poderia se beneficiar muito das medidas descentralizadas de drenagem sustentável, como os jardins de chuva e os reservatórios nos lotes – ou piscininhas. Os planos de emergência durante os eventos e o planejamento da ocupação dos espaços urbanos também fazem parte do conjunto de medidas que compõem a gestão do risco das inundações urbanas.

O PDMAT de 1998 calculou os déficits de capacidade hidráulica em cada córrego. Previu os volumes de amortecimento necessários para que as chuvas fossem amortecidas pelas bacias hidrográficas. Localizou áreas para a implantação desses volumes, apresentou projetos das estruturas, orçamentos e plano de implantação gradativo visando à proteção e redução do risco no imediato, curto, médio e longo prazos. Previu as áreas de várzea a serem reservadas ou restituídas e apresentou um plano factível de execução dessas ações. Quando foi revisado pela primeira vez, em 2009, pouco menos de 30% das ações previstas 11 anos antes haviam sido executadas. A segunda revisão do PDMAT, feita em 2013, ampliou sua área de escopo – inicialmente prevista para as bacias prioritárias – para toda a bacia do Alto Tietê, além de outras revisões. Atualmente, cerca de 40% das intervenções previstas no PDMAT foram executadas.

Não dá pra falar que o plano falhou quando ele não foi executado. Novamente, são números. O sistema de amortecimento não está implantado, em algumas bacias não foi feita sequer uma intervenção. Nas bacias que tem intervenção, elas são insuficientes porque não estão concluídas e porque todo o planejamento que dá suporte às premissas de projeto – especialmente a gestão dos resíduos sólidos, coleta e tratamento de esgotos e prevenção à ocupação das várzeas remanescentes – também não está sendo feito.

É muito difícil ver a cidade à mercê das chuvas, sejam chuvas de frente, como a ocorrida hoje, sejam as chuvas “de verão” – menos longas e mais intensas, saber que o poder público não vem executando o planejamento e ouvir tanto ruído de informação desencontrada de tantos atores que não se conversam.

Tem uma analogia que eu uso em aula, mais por seu efeito didático que pela sua precisão, e que replico aqui, que é com a área da saúde. Uma coisa é prevenir a ocorrência de infartos na população, outra é lidar com os pacientes infartados. Campanhas de informação, ações nas escolas, regulamentação da indústria alimentícia, incentivo às práticas esportivas, todas essas ações juntas previnem a ocorrência de infartos. Lidar com o paciente infartado, no entanto, requer uma abordagem um tanto mais invasiva e de alto custo, que envolve cirurgia e medicação pesada. As nossas áreas urbanas, no que diz respeito às enchentes, são verdadeiros pacientes infartados. Ao mesmo tempo em que tratamos esses pacientes com os procedimentos necessários, é preciso prevenir para que outros não venham a sofrer do mesmo mal. A medicina cirúrgica e preventiva não são excludentes. A engenharia hidráulica e o planejamento urbano também não.

Se temos um histórico de registros e o conhecimento técnico-científico, temos meios de fazer um diagnóstico.

Se concordamos no diagnóstico, é preciso planejar as soluções.

Se temos um plano de ação, é preciso segui-lo. Fazer ajustes, revisões, mas seguir.

Hoje, estamos neste ponto – temos um plano, não estamos seguindo.

Senhores políticos, a bola está com vocês

Nós, técnicos, estamos à disposição para todo o suporte.

Nós, população, estamos cada vez mais cientes e vamos continuar cobrando.

Nós todos merecemos uma cidade mais sustentável.

Melissa Graciosa
Engenheira, Professora de Hidráulica e Drenagem da UFABC, membro do Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê

INVESTIMENTOS DO COMITÊ ALTO TIETÊ

O Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, aprovado em 2018, aponta a prevenção de eventos extremos de cheias como prioridade para a bacia.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (CBH-AT) aprovou recentemente o planejamento para os próximos 4 anos, através do Plano de Ação e Programa de Investimentos 2020-2023.

A previsão é de ser investido, em 2020, R$ 42,4 milhões em projetos e obras previstas no PDMAT 3. Os recursos são do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO), oriundos da cobrança pelo uso da água, que a Fundação Agência da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (FABHAT) realiza anualmente.

Para o período 2020-2023, o Plano da Bacia prevê o valor de investimento de R$ 89,6 milhões, com recursos do FEHIDRO, e de R$ 3 bilhões com recursos de outras fontes.

O CBH-AT e a FABHAT têm trabalhado junto aos municípios e órgãos de Estado para que os recursos sejam aplicados de forma eficiente e eficaz.

Para saber mais, acesse:
https://comiteat.sp.gov.br/home/plano-da-bacia/

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